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Os trabalhos e as noites

Ato II  

Os trabalhos e as noites

Ato II  


As lâmpadas da galeria foram movidas para baixo, em cada parede o grupo de lâmpadas reproduz um verso em código Morse de uma autora da Amárica Latina. Havia um buraco no teto do espaço, no lado esquerdo, de dentro dele temos a projeção de um vídeo do sol do meio-dia. Na parede, do lado esquerdo, foi escrito, com a mão esquerda, o verso: “Réquiem para a mão esquerda”, da poeta cubana Nancy Morejón.  

 

Versos em código Morse

 

1 “Nem em um milhão de anos” – Cecilia Pavón (argentina)
2 “O silêncio é fogo” – Alejandra Pizanik (argentina)
3 “E o tempo que nos olha de dentro da terra” – Ana Mendieta (Cuba)
4 “Quando eu morder a palavra” – Conceição Evaristo (brasil)

5 Orides, n° 4—Projeção do sol do meio-dia no chão (de dentro do buraco do teto)
6 Nancy n° 2— Réquiem para a mão esquerda

Os trabalhos e as noites 

Ato II

(Texto Marisa Flórido)

 

É preciso ouvir as estrelas, disse o poeta.

É preciso lê-las, disseram os adivinhos! É preciso considerar desígnios em seus desenhos. Ou apenas delas desistir, ficar ao desamparo de sua providência mágica.

É preciso desejá-las! E tramaram em conluio estrelas e palavras. De Sidera (constelação sideral), vocábulo dos adivinhos, vieram as palavras considerar e desejar. Considerare era observar as constelações em busca de revelações. Desiderare era renunciá-las, ser por elas desprezado, para arremessar-se na exterioridade do desejo.

É preciso escrevê-las! E com quatro olhos e quatro pupilas, Cāng Jié observou as constelações e os veios das plantas, os rastros dos animais e o voo dos pássaros. Roubou as cifras dos deuses depositadas no céu estrelado ou na terra sulcada, e desenhou os primeiros caracteres revelando neles os segredos do mundo. Os deuses, assombrados, choraram vertendo do céu chuva de grãos, e os maus espíritos gemeram uma noite inteira.

É preciso então suprimir as distâncias e os silêncios! Decretaram sem mais os engenheiros. E construíram uma Babel tecnológica. E para sua escrita à distância, sua tele-graphia, criam uma língua universal, traduzida em um código de sinais. E no on/off das ligações elétricas, acreditaram roubar o tempo da velocidade da luz!

É preciso guardá-las. Cuidaram as mulheres poetas das américas.

É preciso apenas brincar com elas! Disseram os malabares, as artistas e as crianças. E gargalharam com nosso espanto.

E sugeriram uma estupenda cambalhota cósmica! Que o chão se transforme no astro poderoso que refulge sobre nossas cabeças! E que o céu deite suas revelações nos rasgos da terra. Na orelha de Dioniso no antro, nos búzios lançados, nos maracás que acordam as partículas no universo. Pois antes o poema foi canto; antes a escrita foi leitura.

É preciso delas enamorar-se! Reter as distâncias nas penas da palavra, nos azuis de Giotto, rebateram poetas e pintores. Pois não seria a poesia justo esse quebrar de códigos, esse assalto à linguagem, escavando-a de silêncios e sopros, de balbucios e suspensões, para torná- la possíveis?

E teceram em mantos o movimento do universo, escrevendo suas danças e venturas, vestindo a pele com estrelas

bordadas na pulsação dos mundos. E doaram em versos sua sabedoria mais preciosa de

silêncios e promessas.

É preciso mais! Que os astros desçam e dancem conosco neste chão que pisamos, pobres bípedes sem plumas atraídos pela gravidade que nos ata ao solo.

É preciso um desastre, a descida dos astros, para que o mínimo fonema seja articulado, e o silêncio seja traço e abertura de uma prosa infinita.

Que a noite seja a senhora das horas luminosas. Que o dia seja o senhor dos mistérios sem contornos das sombras. Que a meia-noite seja a lassidão das horas ruminantes do meio-dia, que o meio-dia seja o excesso das horas assombrosas da meia-noite.!

É para tal inversão, tal cambalhota cósmica e de sentidos que “Os trabalhos e as noites” de Bianca Madruga nos convida, em dois atos, dois cantos, duas cidades dois céus-chão: Ato I Stella, Tamara, Ana, Reina, no espaço A MESA no Rio de Janeiro; Ato II, no espaço Reserva em Niterói.

No primeiro canto, quatro TVs de tubo dispostas no chão formavam a constelação Cruzeiro do Sul. Em cada vídeo, um verso em código Morse, de mulheres poetas da América Latina, cintila:

Ainda quero prometer não sou eu que gosto de nascer porque a loucura não é uma festa é uma cerimônia nenhum cálculo deixa de ser uma ilusão *

No Reserva, buraco encontrado no gesso do teto, um projetor lança sua luz a imagem do sol do meio-dia no chão; a frase “Réquiem para a mão esquerda” é escrita com a mão esquerda e escavada na parede, o resto do pó permanece no chão; e as lâmpadas da sala descem pensas do teto. Estrelas em queda, em cada uma, versos de outras escritoras e artistas americanas cintilam em Morse, desenhando um poema-constelar em prosa infinita:

Nem em um milhão de anos
Quando eu morder a palavra
E o tempo que nos olha de dentro da terra

O silêncio é fogo **

Ora, diriam as estrelas, como canta o poema por uma escrita universal? Entre epifanias e vertigens, responderiam as poeiras do chão, da letra, e da carne das poetas. E se lançariam no extremo júbilo de nele se quedar!

Marisa Flórido, 2023

*(Reina Maria, CU; Stella do Patrocínio, BR; Ana Botner, BR; Tamara Kamenszain, AR) **(Cecilia Pavón, AR; Conceição Evaristo, BR; Ana Mendieta, CU; Alejandra Pizanik, AR)

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