BIANCA
MADRUGA
"Marlene não vai tomar café da manhã hoje"
Em 2017, eu e Ana Carolina Assis começamos uma conversa sobre o branco. Na época eu trabalhava com sal, instalações com sal, objetos, livros etc. Combinamos de começar um caderno de correspondências juntas. Eu enviei e primeira mensagem, com um pedaço branco de parede encontrado. Ana me devolveu a resposta com um poema.
As páginas a seguir são o registro dessa correspondência e das mensagens não (ainda) enviadas.
21-06-2017
Ana,
sonhei com objetos brancos. Eu ia arranjando as coisas por vizinhança. Fazia pequenos montes, pendurados ou isolados uns dos outros. Eram (pareciam ser) coisas encontradas. Tudo meio sem nome, sem origem. Chamei de “partilha do sensível”, ainda em sonho (era só o sentido mais imediato dessas palavras). Depois, acordada, pensei no seu poema. Passei a colecionar coisas brancas, como um diário de brancos. Quis começar nossa conversa (já há muito começada) assim. Te mando um deles junto ao caderno.
(pedaço de parede)
06-08-2017
Bianca,
Teu pedaço de parede me lembrou a Marlene, quando visitei a colônia, onde a Stela ficou internada, uma amiga fazia um trabalho sobre a Marlene, outra interna que escrevia nas paredes coisas na terceira pessoa, tipo “Marlene não vai tomar café da manhã hoje”. No dia, vi os rabiscos da Marlene e outra interna parou atrás de mim e repetia sem parar “a Marlene morreu”. Essas mulheres esfumaçadas pela parede não me saem da cabeça, e quis dividir contigo. Elas podiam estar no poema branco, mas eu não consegui falar disso até agora. Deixo o poema aqui também, como registro das primeiras coisas brancas que reparei por tua causa.
branco
do vidro contei floquinhos brancos na calçada da tua casa na porta da vila no vidro gotas tentei fotografar mas o flash tornou branca a tela quis registrar pra depois tratarmos o branco o teu sal troco e ruína das latas que catamos e o sal dos siris tropicando e dizendo não é natural que a água esteja pelas canelas ontem os floquinhos contavam tempo do teu sal decantado no fundo de todos os copos todos os traços das gravuras que sequer construímos contavam daquela vez que o heyk viu na entrada do metrô os corpos que ralavam o isopor contra as grades o metrô cortava trilho contava o tempo crivava a neve acrílica na carioca os floquinhos grudavam na cabeça das velhas fotografei teus cantos semicerrados na porta da vila os floquinhos não a areia branca das coisas feitas lembrei dos cacos das quebras de expectativas das montanhas de sal cabo frio janela borrada e outras gotas no vidro adivinhei os floquinhos eram aquele isopor dos moradores de rua acrilon poeira de ossos sequíssimos crostas dos bichos que matei quando criança e teu sal, bianca
21-09-2020
Ana,
Nossa conversa continuou em outros lugares. O caderno passou os últimos anos incompleto, ou talvez tenha passado a se completar nas nossas vozes, nossos olhares, nossos gestos.
Hoje, encontro esse caderno e lembro dos nossos primeiros movimentos em direção ao branco. Você publicou “Primavera das pragas”, com o poema para nossa conversa. Eu colecionei, ao longo de 60 dias, 60 objetos brancos, que foram mostrados na exposição 9+1. É curioso que a mostra tivesse as relações como ponto de partida, nada foi planejado.
Por algum motivo, desejei continuar esse caderno e entregar a você. Talvez por me parecer uma forma de devolver o poema. O que eu sei até agora, é que ainda não entendi esses dias brancos. É possível que eu nunca entenda. Foi em 2015 que comecei a trabalhar com sal, por sua vocação para o desaparecimento e sua disposição para o litoral. Fazer litoral com a vida, com o corpo, com a carne, com a morte, a comida, o beijo.
Acho que o branco acontece para nós por isso. Por essa espécie de litoralidade. Algum apagamento, como o da Marlene.
Eu não sei quais são as cores que restam para os cegos. Talvez um furta-cor. Não sei. Mas na minha imaginação é um branco muito intenso. Como aquele que fica quando fechamos os olhos logo após encarar o sol.
Tem uma coisa de resto ali. Quase uma memória.
O branco é uma pedra sem endereço. É preciso arrancar o ainda dessa pedra. Um acontecimento branco pode ser essa força dos nossos ausentes. Dizer o branco é impossível. O branco é a morte da Marlene.
Avesso de osso: branco
branco sobre branco
pele sobre pele
língua sobre língua
Ainda falta muito
Ainda falta
Ainda falta muito
Ainda sobra
Ainda sobra muito
Ana,
Estou tentando entender com as mãos toda essa distância, todo esse longe, todo esse “ainda não”, “jamais”. Como essas lonjuras nos formam também.
Achei essa foto em uma maletinha onde costumo guardar pedaços de objetos, imagens, restos, coisas e gentes sem nome para mim.
O que essa senhora espera, para onde ela olha. Gosto de pensar que ela é também um tipo de Marlene, que, mesmo tendo muito de si já rareando, não cessa de gestar. Escrever nas paredes como quem escreve uma carta para si mesma. Uma carta que nunca chega, mas sempre já foi recebida.
Dentro da mesma maleta encontrei essa carta. De dificílima leitura, como toda e qualquer mensagem.
leio:
carnaval
que o encontraria da D. Flávia
os imóveis serão escuditos/ sacuditos
ou
as casas estão dando forças/ foi ecos/ furos
receberá sua parte em demora
ao Dr. Meira ela escreveu
que a ser prometeu ela
responderá procurar e se
ela com lento que resposta
musicais/minúsculas/menções
senão foi e Flora
voltar ao colégio. Espero que Theresinha
fortes as manhãs não se saia
menino bobo prosa se para ir
que até amo teará melhores notas
se encantou semelhar os jarros das jás. Areia em um dia textos
certamente procurarás