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(texto da exposição Ponto de Queda, na Galeria Ibeu) Do leste vieram pássaros rápidos leves nem sombra nem rastro deixam: apenas passam. Não Pousam Vôo onde ninguém mais – vivo em luz mínima 1. Esta montagem é um tanto enigmática. É como se eu fosse presenteado com um caderno, para anotar as idéias que porventura surgissem, como se isso já me tivesse acontecido antes, mas o caderno não tivesse sido usado para nada, só que dessa vez, neste retorno, do eterno, não houvesse qualquer caderno. Sabe que sensação é essa? Não é completamente incomum, porém é difícil de explicar de modo não alusivo. A alegoria que me ocorre é que voar se aprende, quando se aprende, a partir do ímpeto de estar em plena queda. Por isso é o caso de admitir que não é bem um sentimento, mas um estado, um modo, e não a relação com um objeto. Sabe o que se sente quando se faz algo que só dá para ser feito ao não se pensar no que se está fazendo? Digo, fazer bem, como que faz bem tricô? É isso. Esta montagem tem que ver com uma sensação suspensiva. E todos os versos deste texto são de autoria da Orides Fontela. 2. Há quem diga que é preciso crer. Mas ousaria sugerir que pouco ou nada disso tem que ver com a crença. Essa confusão se deve a ser mais fácil o caminho, ao ponto de queda, convencendo-se de uma coisa só, por mais absurda que possa parecer, Tertuliano dizia que quão mais absurda melhor, do que, oras, primeiro crendo e depois descrendo em objetos diferentes. Os efeitos positivos da crença, de ter uma crença, devem-se, nada mais nada menos, à proximidade com nada crer. Não é crer em nada. Apenas, uma vez preenchidas as condições, por assim dizer, alçar a algo, no campo semântico de suspender. 3. Acho que tudo enquanto está atinge este ponto, este estado de queda. Aquele em que voar e cair é o mesmo. Em que subir e descer é o mesmo, para lembramos do Heráclito de Éfeso. A Bianca, por sua vez, gosta de tal dificuldade, diria que ela crê neste ponto e monta sobre ele uma metalinguagem, como fez Barthes em seu belo curso sobre O Neutro. Por isso o aspecto enigmático da montagem, ou da performance a abandonar a posição de espera, numa espécie de certeza de que se está caindo. 4. O espaço está escurecido. É importante que a luminosidade interna seja tomada como a repetir a relação de um mesmo sol com dois sólidos. A sombra projetada, quase sombra nenhuma, indica uma hora, senão um dia, pelo menos uma época do ano, um outono acontecido. Por sua vez, o sol aqui não é bem uma metáfora da estrela que brilha do lado de fora, não exatamente, mas outra, um tanto parecida, porque as paredes da galeria são ligeiramente movidas para o lado, apenas alguns graus, a direção do sol que ilumina as elevações internas é delicadamente inclinada. A mudança nas sombras pode ser sutil, porém os efeitos cósmicos são expressivos. Na concorrência entre o sol de dentro e o sol de fora é justo aceitar que o tempo não é mais o mesmo, a precisa mesma hora. Entre o dentro e o fora se ganham ou se perdem alguns instantes. A entrada e a saída acarretam numa suspensão, alguma coisa entre a queda e o vôo. 5. As elevações iluminadas são curiosas. Elas não são ereções no escuro, no sentido empregado por Raquel Versieux em Antes da Última Queima, isso porque não é a verticalidade, pura e simples, o mais importante, salvo em seu aspecto inicialmente simulado. Lá não havia desmoronamento possível, uma vez que toda estrutura, vazada por dentro, havia se tornado densa pela secagem da água usada como aglutinante. Aqui o sólido é inteiriço e é sustentado tão somente pela compressão de suas partículas. A mesma mistura terrena grosseira de sempre, mas em cujos átomos não há qualquer auxílio para que parcialmente se engulam uns aos outros. Lá não havia fim ou começo, ainda que todo esse carvão e fumaça possa conosco acabar tão serenamente quanto à uma família de brasileiros passando férias em país frio. Aqui o desafio é a admiração com as frágeis e belas estruturas de vôo que são puro equilíbrio, quase ilusionismo, porém sem promessa de transformação. Elas só não podem ruir inteiramente, porque são ruinas desde sempre. Donde a arbitrariedade em apontá-las em queda ou vôo. A densidade existe só porque é um simples capricho. 6. Ninguém melhor do que Nelson Goodman aborda os impactos de tais dificuldades suspensivas que Bianca explora em seu trabalho e que mesmo assume como uma ética. O primeiro é a necessidade da admissão de mundos no plural, atuais e convivendo, dividindo partes, nem sempre pacificamente. O segundo é que os mundos se fazem uns dos outros, como paráfrases, por mais originais ou cheirando a novos que possam ser. Os mundos, noutras palavras, se recontam pictoricamente e linguisticamente. O terceiro, este ainda mais importante para este Ponto de Queda, é a estrita convenção que diferencia o movimento aparente do movimento real. Se nos forem apresentados, simultaneamente, momentos diferentes, ascendentes ou descendentes, das elevações, vamos vê-las se movendo, de forma semelhante ao assistirmos todas as etapas do desmoronamento ou incremento em direção ao céu. Se o mundo da queda é outro que não o mundo do vôo, ambas são, mesmo assim, derivações do estado suspensivo do qual dependem. Não é que todo movimento seja aparente ou que todo movimento seja real, mas que tal referência, tal morada entre parênteses, é comum a tudo, porque tudo se move, em todos os mundos. O movimento está antes da última queda. matar a luz elimina o limite 7. Algo semelhante é possível de ser reparado no tempo. Ele nem é absoluto, de tal maneira que, para todo os mundos, haja uma trajetória progressiva e linear, e nem é relativo, a ponto de existir uma realidade sem tempo. A evidência de que ele passa diz respeito às marcas da mudança, na maior parte das vezes, aos sinais de decadência e renovação, desde uma referência. Nada mais comum que se valorize ao extremo os segundos, num mundo que tenta resistir à exploração do trabalho, ou falta dele, ao passo em que idealiza os modos da eficiência. Assim, sem movimento, sob a simulação, na dinâmica expositiva, de um eterno meio dia, no que diz respeito à relação com o sol, não há tempo, não do lado de dentro. Mas sempre há tempo. Ele será vivido a ponto de queda, tendo as partículas adensadas como ampulhetas, como clepsidras de areia. Elas e a sensação da circulação do sangue pelas veias, a queda, por ventura, dos cabelos e dos cílios, a perda, gradativa, do vigor das pernas, a reviravolta dos ácidos, apontadores da fome, a secura da boca, como índice da possível sede, a oleosidade acumulada da pele, todos esses movimentos do tempo mínimo, mas não pelo deslocamento da sombra projetada pelo sol. Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política à UFF. Desde 2015 é Curador da Galeria IBEU. Autor, dentre outros, de Fuga sobre o Branco [ ].

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